Aos dois anos de idade eu sofri um acidente que poderia ter
me matado, mas não matou. Ainda bem: para uma pessoa que duvida suficientemente
da existência de uma alma eterna, a vida oferece mais possibilidades do que a
morte.
Não sei se isso é realmente uma lembrança ou uma imagem que
se calcificou na mente por ter ouvido (e repetido) o conto tantas vezes, mas eu
me recordo muito bem da minha queda. Curioso. Eu costumo sonhar que estou
caindo com uma certa frequência. Também costumo sonhar que estou voando, mas isso eu sei que
nunca fiz.
Também lembro o quanto, durante meus anos de formação, as sequelas
desse acidente me foram doídas. E, já que meus anos de formação acabaram se
estendendo até os dias de hoje ("Nascer é muito comprido" etc), a dor foi tanta, e durou tanto tempo, que pensei ser uma parte indissociável da minha personalidade.
Como se eu fosse uma pessoa doída, como se não me reconhecesse sem a dor.
Quando era mais nova, acreditava em uma certa justiça no
mundo. Pensava que haveria de ter, mais cedo ou mais tarde, eventos que compensassem o efeito de eventos anteriores, e que o caos tenderia naturalmente a uma espécie de equilíbrio. Então, o que havia acontecido comigo, apesar de muito triste, era também
muito tranquilizador: era a minha fatia do bolo de sofrimento que a
humanidade inteira é obrigada a comer nessa festinha da firma que é a
vida.
E agora, depois de tantos anos, consigo olhar para o passado como um ato de sobrevivência. Mas sei que esse não foi um ato meu. Não fui eu quem o realizou. Eu não caí, tampouco sobrevivi ativamente. Foi um agente da passiva qualquer. Não sei quem ele poderia ser,
mas costumo chamá-lo de acaso. A verdade é que vivemos sob o reinado do erro. Foi assim que o Acaso acabou tomando o lugar da Justiça. E, nesse momento, apesar de conseguir aceitar o que veio, eu tenho muito medo do
que ainda está por vir. Por vir no porvir (peço aos mais sensíveis que perdoem o trocadilho).