domingo, 9 de junho de 2013

Faixa #2: O fim da esperança

de madrugada
as janelas todas
apagadas
tirando um ou três
desajustados
que coitados estão
todos tão perdidos
quanto eu

entra um bicho exótico
no meu habitat
no momento exato
no meu coração
alguma coisa acontece
e na rádio não toca
coisa alguma

o bicho revoa
por cada canto
eu acompanho
os olhos vivos
de curiosidade
meu gato
a observá-lo
meu gato
a atacá-lo
meu gato
a mastigá-lo

o ditado diz:
a esperança é
a última que morre
mas às 4:43
de uma quarta
ela morreu
no meu quarto
e eu continuo
fatalmente viva

Faixa #1: Prólogo

Aos dois anos de idade eu sofri um acidente que poderia ter me matado, mas não matou. Ainda bem: para uma pessoa que duvida suficientemente da existência de uma alma eterna, a vida oferece mais possibilidades do que a morte.

Não sei se isso é realmente uma lembrança ou uma imagem que se calcificou na mente por ter ouvido (e repetido) o conto tantas vezes, mas eu me recordo muito bem da minha queda. Curioso. Eu costumo sonhar que estou caindo com uma certa frequência. Também costumo sonhar que estou voando, mas isso eu sei que nunca fiz.

Também lembro o quanto, durante meus anos de formação, as sequelas desse acidente me foram doídas. E, já que meus anos de formação acabaram se estendendo até os dias de hoje ("Nascer é muito comprido" etc), a dor foi tanta, e durou tanto tempo, que pensei ser uma parte indissociável da minha personalidade. Como se eu fosse uma pessoa doída, como se não me reconhecesse sem a dor.

Quando era mais nova, acreditava em uma certa justiça no mundo. Pensava que haveria de ter, mais cedo ou mais tarde, eventos que compensassem o efeito de eventos anteriores, e que o caos tenderia naturalmente a uma espécie de equilíbrio. Então, o que havia acontecido comigo, apesar de muito triste, era também muito tranquilizador: era a minha fatia do bolo de sofrimento que a humanidade inteira é obrigada a comer nessa festinha da firma que é a vida.

E agora, depois de tantos anos, consigo olhar para o passado como um ato de sobrevivência. Mas sei que esse não foi um ato meu. Não fui eu quem o realizou. Eu não caí, tampouco sobrevivi ativamente. Foi um agente da passiva qualquer. Não sei quem ele poderia ser, mas costumo chamá-lo de acaso. A verdade é que vivemos sob o reinado do erro. Foi assim que o Acaso acabou tomando o lugar da Justiça. E, nesse momento, apesar de conseguir aceitar o que veio, eu tenho muito medo do que ainda está por vir. Por vir no porvir (peço aos mais sensíveis que perdoem o trocadilho).